Naquela noite fria de junho, o céu de Curitiba parecia avisar: algo estava prestes a mudar. Samuel completava 30 anos sozinho, em silêncio, diante de uma mesa posta com cuidado, duas taças de vinho barato e um macarrão ao molho branco já morno. Era um homem calmo, gentil, daqueles que mandam mensagens só para lembrar alguém de beber água. Sua namorada, Camila, estava atrasada — e distante, como vinha acontecendo há semanas.

O que começou como um amor tranquilo, feito de cafés compartilhados e livros empilhados, se transformou em silêncio, cobrança e ausência. Camila, antes encantada pela serenidade de Samuel, passou a vê-lo como alguém pequeno demais para os sonhos que ela dizia ter. E naquela noite, ao ignorar seu aniversário, ao rir do jantar feito com carinho, ela deu um passo a mais para longe dele — e não só fisicamente.

No dia seguinte, Samuel encontrou um bilhete esquecido: “Sei que ele é bom, mas não é o que eu quero mais.” O golpe foi seco, mas ele não reagiu. Tentou mais uma vez. Uma vela acesa, uma torta simples da padaria da esquina. Camila chegou arrumada demais, com desculpas gastas. “Preciso respirar”, disse. E saiu, sem olhar para trás.

Mas o destino, às vezes cruel e também generoso, decidiu virar a esquina em alta velocidade.

Na calçada molhada, ao ver Camila atravessando sem prestar atenção, Samuel correu. Sabia que não daria tempo de pensar. Apenas agiu. O impacto do carro o arremessou. Ela, ilesa. Ele, caído no asfalto com os braços virados num ângulo impossível.

Samuel sobreviveu, mas o preço foi alto: amputação dos dois braços. Camila ficou no hospital por algumas horas. Não por amor, mas por culpa. Quando os médicos confirmaram que ele viveria, ela foi embora. Deixou um bilhete na recepção: “Obrigada por me salvar. Mas eu não consigo continuar com isso. Me perdoe.”

Quando Samuel acordou, entendeu que havia perdido mais do que membros. Tinha perdido a mulher por quem havia dado tudo. E, por alguns dias, perdeu também a vontade de continuar.

Foi então que apareceu Sara.

Terapeuta ocupacional, ela não chegou com fórmulas mágicas. Chegou com silêncio. Com escuta. Com presença. Dia após dia, sentava-se ao lado de Samuel, lia para ele, levava música, esperança. Um tablet com sensores de movimento permitiu que ele escrevesse a primeira palavra: dor. E Sara respondeu: “Excelente começo. Dor também é matéria-prima.”

Com o tempo, Samuel foi se reconstruindo. Palavras viraram textos, textos viraram um blog. A solidão virou diálogo. A ausência virou espaço para novas presenças. Ele aprendeu a viver sozinho, com tecnologia assistiva, escrevendo sobre recomeços. Em suas palestras online, dizia com convicção: “Não é o que falta que define quem eu sou.”

Até que um dia, numa palestra sobre resiliência, ela reapareceu.

Camila estava diferente, mais simples, mais contida. Procurou Samuel no final. Queria se explicar, talvez se desculpar. “Eu era vazia e cobrei de você o que eu não tinha para dar”, confessou. Mas ele já não era mais aquele homem esperando ser amado. Respondeu com calma: “Eu não guardei raiva. Mas também não sobrou espaço.”

E se afastou, sem mágoa, sem revanche. Apenas em paz.

Na saída, Sara o esperava. O mesmo olhar sereno de sempre. E naquele instante, ao encostar a testa na dela, Samuel entendeu: amar de verdade não é segurar, é caminhar ao lado. Mesmo com passos incertos.

Hoje, ele vive sem os braços, mas com o coração inteiro. Entendeu que o verdadeiro recomeço não é sobre recuperar o que se perdeu, mas sobre escolher o que fazer com o que ficou. E escolheu viver com presença. Com paz. Com quem fica.

Porque o amor verdadeiro não exige perfeição. Ele apenas permanece.